sexta-feira, 26 de outubro de 2012

ALERTA PARA UM CONFLITO ESQUECIDO

 
ZERO HORA 26 de outubro de 2012 | N° 17234

NOS CONFINS DO BRASIL

Carta na rede social alerta para conflito esquecido. Há uma década, índios e fazendeiros disputam terras em Mato Grosso do Sul

CARLOS WAGNER


Uma ameaça de suicídio coletivo tornou conhecido no mundo um conflito agrário esquecido em um dos rincões do Brasil. Em carta divulgada pelas redes sociais,170 índios guaranis kaiowá teriam prometido se matar caso fossem despejados de um pedaço de terra que invadiram na Fazenda Cambará, em Iguatemi, pequena cidade pecuarista no Mato Grosso do Sul.

Embora os autores do documento tenham explicado ontem que houve erro de interpretação e que a intenção é resistir a uma ação de despejo, a repercussão do caso só aumentou. O pano de fundo do conflito é uma outra disputa por terra travada nos anos 1970 nos Estados do Sul, principalmente no Rio Grande do Sul. Na época, para aliviar pressão social, a União, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), levou centenas de famílias de agricultores para povoar o Centro-Oeste. Tribos que viviam na região foram desalojadas.

A Constituição Federal de 1988 garantiu a retomada dessas terras pelos indígenas. Desde então, articulados por ONGs, os indígenas envolveram-se em conflitos agrários com os donos de fazendas que estariam em terras que lhes pertenciam. Uma parte da Cambará, uma área de 762 hectares de gaúcho Osmar Luís Bonamigo, é reivindicada pelos guaranis. Ontem, o advogado dele, Armando Albuquerque, em Campo Grande (MS), disse que provou na Justiça o direito do cliente sobre as terras, que teve uma pequena fatia (em torno de um hectare) invadida pelos guaranis kaiowás.

Há duas semanas, a Justiça Federal, em Naviraí (MS), concedeu liminar determinado a reintegração de posse. O prazo para o cumprimento da ordem é de 30 dias, e os oficiais de Justiça ainda têm duas semanas para cumprir o mandado. Em caso de descumprimento, a Fundação Nacional do Índio (Funai) deverá pagar multa diária de R$ 500. Os advogados da Funai entraram com recurso contra a reintegração de posse no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3).

Independentemente do resultado, o episódio circula pelo mundo. A visibilidade tem a ver com um surto de suicídio entre guaranis que reivindicavam a devolução de terras nos anos 90.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ONG ligada à Igreja Católica, divulgou nota alertando que a carta foi mal interpretada. Na verdade, os índios prometeram resistir “até a morte” ao despejo, e não se suicidar.


Trechos do documento
- Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS (...)
- Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos (...)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

KAIOWÁS FALAM DE "MORTE COLETIVA"

JORNAL DO COMERCIO 24/10/2012 - 14h19min

Índios falam em ''morte coletiva'' após decisão judicial

Agência O Globo



Um grupo de 170 índios Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul estaria pronto a cometer "morte coletiva", segundo carta aberta divulgada pelas lideranças indígenas. Os índios estão acampados na fazenda Cambará, à margem do Rio Joguico, no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul. Uma decisão do juiz federal de Naviraí, Henrique Bonachela, determinou a saída do grupo da área e fixou multa de R$ 500 por dia em caso de descumprimento.

A carta diz que o grupo não sairá da fazenda, ‘nem vivos e nem mortos’. “Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos”, diz a carta aberta divulgada pelos índios.

A Funai e a Procuradoria da República recorreram da decisão no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. De acordo com o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Luiz Henrique Eloy, a área em que os índios estão acampados é objeto de demarcação por parte da Funai.

"Com a pressão da Procuradora da República, a Funai iniciou o processo de demarcação em 2007. Mas todas as etapas estão atrasadas", diz Eloy. Segundo ele, a carta precisa ser compreendida levando em conta a cultura guarani. "Tem que compreender a cultura guarani. Quando eles expressam isso, de morte coletiva, estão dizendo que não estão propensos a abrir mão do território. Eles vão resistir. Não é que irão se suicidar."

Em nota, a direção do Cimi também nega a possibilidade de um suicídio coletivo: O Cimi entende que na carta dos indígenas Kaiowá e Guarani de Pyelito Kue, MS, não há menção alguma sobre suposto suicídio coletivo, tão difundido e comentado pela imprensa e nas redes sociais. Leiam com atenção o documento: os Kaiowá e Guarani falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las. Vivos não sairão do chão dos antepassados. Não se trata de suicídio coletivo!”, diz o texto.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

MORTE DE CADETE DA AMAN HÁ 22 ANOS: ESTADO ADMITE RESPONSABILIDADE


Estado admite responsabilidade por morte de cadete há 22 anos. Márcio Lapoente foi morto após ser espancado por superior na Aman

Luiza Barros
O GLOBO 22/10/12 

RIO — A Secretaria de Direitos Humanos reconheceu nesta segunda-feira a responsabilidade do Estado na morte do cadete Márcio Lapoente da Silveira. O jovem de 18 anos morreu em 9 de outubro de 1990 na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), após ser espancado e submetido a exercícios até a exaustão. A portaria assinada pela ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, sela um acordo entre a família e o Governo a junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O reconhecimento da responsabilidade, porém, não prevê reparação em dinheiro à família, cujo pedido de indenização tramita em ação judicial na 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro e deve ser resolvido pela Justiça comum brasileira.

O acordo determina ainda a inauguração de uma placa na Aman em homenagem a Márcio e a aplicação de medidas preventivas para evitar novos casos do gênero, por meio da realização de “estudos e gestões com vistas ao aprimoramento da legislação e da atuação das Justiças Comum e Militar” e da ampliação do “ensino de direitos humanos no currículo de formação militar”.

A Secretaria de Direitos Humanos ainda se comprometeu a analisar 23 casos de supostas violações aos direitos humanos ocorridas no âmbito das Forças Armadas, conforme estudo elaborado pelo Grupo Tortura Nunca Mais. Foram os pais de Lapoente que ajudaram o grupo a reunir casos similares ao do filho ao longo dos anos.

A mãe do cadete, Carmen Lapoente, comemorou o reconhecimento, apesar da demora.

— O pedido de desculpa não vai trazer meu filho de volta, não vai diminuir a minha dor. O mais importante para mim foi o reconhecimento de que ele não morreu de morte natural.

Segundo relatos de colegas do rapaz na época, Lapoente foi espancado pelo capitão Antônio Carlos de Pessôa porque pediu para ser liberado do exercício, após se sentir mal durante uma caminhada de cinco quilômetros. O rapaz foi obrigado a prosseguir com o exercício, e desmaiou. Em seguida, o capitão chutou a cabeça do cadete e outras partes do corpo de Lapoente, que teve quatro dedos esmagados por uma coronha de fuzil. O jovem ficou exposto ao sol, inconsciente, por três horas, até ser socorrido por uma ambulância. Quando chegou ao Hospital Central do Exército, o cadete já estava morto. Em dezembro de 1992, a Justiça Militar condenou o capitão Antônio Carlos de Pessôa a três meses de detenção.

— O mais doloroso para mim é saber que ele passou por tanto, e diziam que ele estava fingindo, que ele era preguiçoso — diz Carmen, que conta que, quando recebeu um telefonema do hospital, ouviu que o filho dela estaria “com uma febrezinha”.

A mãe do cadete acredita que a realidade nas Forças Armadas não mudou desde a morte de Lapoente. Segundo ela, havia, em 1990, a expectativa de que o caso pudesse ser exemplo de punição de militares após a ditadura, o que não aconteceu.

— Até hoje é difícil ter punição em casos do Exército. Acontecem certas coisas lá dentro por causa da certeza da impunidade. Tem mãe que tem a lucidez de entregar o filho à polícia. Por que nas Forças Armadas não pode ser assim? O que a gente encontra é o argumento de que “é assim mesmo”. Se tiver punição, isso vai diminuir — reflete.

Em 2009, Carmen perdeu o marido, Sebastião, que, assim como o filho, também era militar. Hoje, a viúva vive com um filho portador de necessidades especiais no Rio. Ela explica que a ação que move na Justiça é contra o tenente Pessoa, e não contra a União.

— Com o processo, ele teria que pagar do bolso dele pela morte do meu filho, o que serviria de exemplo. Eu tenho minha casa, meu dinheiro, não vai mudar minha vida, não vai me trazer felicidade. O que faz falta é o meu filho, que era o futuro da gente. A vida da gente toda, as esperanças todas estavam depositadas nele — desabafa.