terça-feira, 23 de junho de 2015

DOMINGO NA FARMÁCIA


ZERO HORA 23 de junho de 2015 | N° 18203

TICIANO OSÓRIO*


A propósito dessa imprecisão, um aviso: não interagi com os três personagens. Não desempenhei, diretamente, meu papel de jornalista ali. Preferi ficar de testemunha, tão somente.

O homem – um sujeito de cabelos prematuramente grisalhos, vestido com moletom, calça jeans e tênis tipo All Star – aproximou-se da balconista, com a namorada dele (uma moça de blazer preto, jeans e botas de cano alto) um passo atrás. Ele pediu uma pomada, procurava um curativo, não lembrava direito o nome do produto. Aí que, para ser melhor entendido, fez surgir o terceiro personagem, ao qual minha visão periférica ainda não havia prestado tanta atenção.

Era um rapaz negro, com pouca roupa para o frio que estava fazendo (mesmo que estivesse de manga comprida). A um aceno do jovem grisalho, o rapaz postou-se bem à frente do balcão. A intenção era que a atendente pudesse espiar o seu pé direito – descalço como o esquerdo. A diferença era o vermelho do segundo dedo.

– Ele se machucou – disse o homem de cabelo acinzentado.

Foi só então que compreendi a cena. Aquele casal, como diálogos complementares me informaram, havia recolhido o menino de uma esquina qualquer, colocado-o em seu carro e ido ao shopping para tratar de seu dedo machucado e ensanguentado e, depois, dar-lhe de presente um par de tênis.

Essa cena me deixou estarrecido.

Comigo mesmo.

Porque na hora fiquei pensando nos mil e um motivos que a gente dá para não exercer a solidariedade de um modo mais frequente e mais ativo. É o trabalho que nos consome, é a falta de tempo, a falta de dinheiro, as duas filhas para criar... Pode ser também o excesso de realismo – na fila do caixa, uma senhora elogiou a atitude do casal, mas advertiu:

– Eu também faço trabalho social. Às vezes, eles trocam os tênis por droga.

Não perguntei para o jovem casal, mas me parecia claro que, para eles, isso não importava. O importante era que fizessem sua parte, que ajudassem aquele rapaz, que providenciassem para que, pelo menos por aquele tempo que passaram juntos, o garoto se sentisse acolhido, protegido, quem sabe até amado. Ficar uma meia hora naquela função não atrapalharia seus planos de domingo, abrir a carteira e gastar alguns reais não lhes tiraria nada, porque o que o jovem grisalho e sua namorada tinham, eles tinham de sobra: a esperança.

Editor de ZH*

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